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Estupro e negligência social

Como mulher e feminista, me sinto na obrigação expor a minha opinião sobre declarações feitas por Alexandre Frota no programa "Agora é Tarde", apresentado por Rafinha Bastos. No programa exibido em maio de 2014 (e reprisado na última quinta-feira), Frota fala de um suposto estupro. Infelizmente temos que adotar a palavra "suposto" porque, embora ele tenha narrado o fato com se fosse uma confissão, ele desmentiu toda a história afirmando ser apenas uma piada. Sendo assim, "por insuficiência de provas e contradição nos depoimentos", podemos apenas considerá-lo suspeito e "agressor em potencial". A vontade de escrever sobre o assunto foi crescendo dentro de mim nos últimos dias, tanto que estou perdendo uma noite de sono para publicar esse texto.

Primeiramente, preciso dizer uma coisa as minhas leitoras e aos "feministas voluntários" (para adotar a expessão cunhada pela atual  Embaixadora da Boa Vontade da ONU, Emma Watson): eu aprendi com minha avó materna quando tinha sete anos de idade que nunca devemos dar ao inimigo o que ele quer. E, sem dúvidas, o que esse ex-global quer é IBOPE. Isso porque talento e competência ele não tem para mais nada. Nem mesmo para conquistar uma mulher e fazê-la apaixonar-se por ele. Isso fica visível no discurso machista adotado por ele nos últimos anos do qual nem sua ex-esposa diva e maravilhosa escapa. Quando lembro que Cláudia Raia foi casada com esse projeto de homem tenho a prova cabal de que todos nós somos ou seremos ludibriados um dia. É, acontece.

Como estava dizendo, não quero aqui escrever sobre alguém que serve de bobo da corte para trazer audiência da forma mais depreciativa possível.  Meu foco não é esse homem frustrado profissional, social e sexualmente, e sim o espaço midiático que lhe é concedido. Esse lugar reservado para suas polêmcias reflete a identificação da massa com esse tipo de discurso. Afinal, eles não jogam para perder! O que dizer sobra a platéia ter aplaudidos e considerar engraçada a piada? A meu ver, acharam graça porque as pessoas não querem pensar antes de agir. Para o rebanho, falou que é piada é para rir sem nem ouvir a parte verdadeiramente cômica da história. Nessas horas, eu me pergunto: tão rindo de quê? já conheciam a piada?. É compreensível que o público tenha reagido dessa forma. Não somos educados para a reflexão. Somos "homens-máquinas" habituados a reproduzir, a padronizar e a seguir o rebanho. Sempre. Ninguém quer ser o diferente. Tira o 't" do meu nome dessa lista. Sempre fui e sempre serei desviante!

Antes de tratar de duas experiências dolorosas vividas por mim, quero discutir dois pontos:

1-Para tudo tem um limite. Para piada também!
A comédia trabalha com esteriótipos, com elementos do imaginário popular, com distorções da realidade. A piada é essencialmente caricatural. E como uma caricatura distorce o real para torná-lo cômico. Não entender a piada é não conseguir visualizar a narrativa. Ouvir uma piada tem um mesmo efeito sobre a nossa mente que ler um livro, nós imaginamos aquela situação e nos divertimos. Se existe alguém que consegue rir de uma situação de coação e estupro, eu diria que esse alguém sofre de uma anomalia patológica absurda. Não, não é só uma piada é uma narrativa imaginada para ser cômica. Desculpa se eu tenho a mente limitada e não consigo visualizar a graça disso.

2-Estupro é qualquer TENTATIVA forçada de sexo.
Sim, não precisa ter penetração. No Brasil, basta existir abuso para ser um estupro. Muitas mulheres machistas (sim, é importante falar delas) criticam as amigas que não reagem a manifestações públicas de assédio sexual. Sem saber que quase sempre nos locais onde essas práticas são realizadas não há testemunhas interessadas em denunciar. Se a própria vítima não se defender e ridicularizar em agressor em público, nada acontece. A população se revolta somente quando a vítima é a primeira a denunciar. Ou seja, novamente, o rebanho só responde aos chamados de ordem. Fica a ideia de que "a mulher não reagiu porque estava gostando". Não se pressupõe que essa mesma mulher pode não dizer nada por notar que todos veem, mas ninguém  tenta ajudá-la. Portanto, ela se sente desamparada.

Eu quero compartilhar aqui duas situações que vivi. Tive outras situações como essa, mas essas duas em particular eu costumo partilhar porque focam exatamente na questão da pressão social vivida por homens e mulheres e no machismo de ambos. Não sei dizer qual é a pior, as duas mexem comigo até hoje. Eu diria que a segunda é a mais inquietante porque eu ainda vejo meu agressor caminhando pelas ruas da cidade.

Há oito anos atrás, quando eu passava pela minha quarta ou quinta manifestação pública de assédio dentro de um ônibus, senti na carne o machismo feminino. Eu que mudava de lado, ou descia fora do ponto, ou, ainda, em um dia de fúria xingava os "tarados de plantão", nesse dia não tive a menor reação. Já tinha acontecido de tudo. Desde um homem em pé com ereção diante dos meus olhos, eu estando sentada, à um cara me entregar um cartão com contatos para prostituição. E antes que você, machista, pense que eu ando de roupas curtas provocando os homens, te adianto que boa parte dos casos de abusos que sofri eu estava com as roupas mais compridas que você possa imaginar. Coloco, sim, roupas curtas (e isso não justifica nada), mas quase sempre estou no meu estilo étnico e alternativo, ou seja, muito coberta.

Era um domingo ensolarado. Fazia uns 42 graus no Rio de Janeiro.  Eu saí da casa da minha prima que ficava praticamente na orla da praia de Copacabana para pegar um ônibus super lotado e voltar para minha casa. Estava tão cheio que o ar-condicionado não dava vazão e as pessoas permaneciam suadas, inclusive eu. Os corpos colados e suados me incomodavam. Eu estava tão distraída que custei a perceber que o ônibus continuava cheio, mas estava consideravelmente espaçoso. Foi aí que vi que o cara do meu lado continuava colado em mim. Eu me afastei e olhei para aquele short amarelo. Eu não tenho a menor ideia de como ele conseguiu se masturbar, mas ele o fez. Havia uma mulher sentada em nossa direção que fez cara de quem viu tudo e reprovava a minha postura. Eu, um tanto desnorteada, apenas liguei para minha prima e relatei tudo em voz alta e olhando para meu agressor. E ele me olhava como quem diz "e daí?". Eu gelei de medo. Quem me conhece sabe que não tenho medo das pessoas, mas a naturalidade dele me assustou. Ele não teve medo de ser punido. E ninguém o quis punir. Legalmente, eu não poderia acusá-lo porque ele não me levou a fazer nada, embora ele mesmo tenha feito algo que me causou constrangimento.

O pior foi ver a reação da minha família quando eu cheguei em casa. Como se insinuassem meu consentimento me questionaram o porquê do meu silêncio, da minha inércia. Eu surpresa com aquela resposta levei alguns minutos para replicar. Eu me perguntava se eu tinha enlouquecido porque não podia ser verdade. Como assim? Uma pessoa que faz aquilo publicamente sem se intimidar é capaz de muito mais longe dos olhos da multidão. Imagina se ele encontrasse uma maneira de me tirar dali e... não quero nem pensar. A única que a concordar comigo naquele dia foi uma senhora que estava sentado a frente, e portanto, não viu nada. Saltamos no mesmo ponto e ela disse que pessoas como ele são capazes de coisas piores. Reagir naquele caso só ia piorar a situação.  Me disse para ficar bem. Foi importante ela fazer aquilo porque eu fiquei transtornada quando comecei a dimensionar a situação.

Quando você pensa que não vai acontecer de novo...

Ano passado, eu decidi encontrar com um velho amigo meu na Lapa. Ele e mais alguns outros prestavam uma homenagem a memória de uma falecida amiga. Eu que já não moro no Rio há um tempo, tinha hora para pegar a condução para minha casa. Na empolgação, acabei perdendo o último ônibus para minha cidade. E fui convencida por ele a passar a noite na casa de um amigo dele, que eu já conhecia de vista, mas que nunca havia trocado uma palavra comigo. Nem mesmo naquele dia. Não passou de um "boa noite" e de um "sim" ou "não" as minhas perguntas. Quando meu amigo pediu para eu ficar na casa desse cara, percebi claramente que ele ficou contente. Eu estranhei, mas meu velho amigo me disse que eu estava em boas mãos e que ele não me faria mal algum. Confiei no meu amigo, mas sentia que ele mesmo desconhecia a capacidade do seu companheiro.

A casa dele ficava no bairro ao lado. Já no caminho eu estava incomodada. E ele me dizia "relaxa". Ao chegarmos na casa ele foi tomar banho. Quando voltou me levou para o quarto e me disse para deitar na cama e eu perguntei "onde você vai dormir?". Ele novamente me disse para relaxar. Havia outros homens na casa. Estavam dormindo notoriamente bêbados. Eu fiquei lá naquele quarto e por alguns instantes me senti uma pessoa perdida. Não tinha como ir para minha casa. Estava tarde. Todas as pessoas para as quais eu liguei não me atendiam. Eu só mentalizava que a rua era pior. Não estava com medo. Tenho fé. Sempre. Só estava angustiada por não saber o que viria em seguida. Ele nunca falou comigo, mas agia como se fosse tudo muito natural. Deitou na cama e me chamou para fazer companhia. E eu retruquei: "você não tem um colchão?". E irritamente ouvi outro "relaxa". A essa altura ele alisava minhas coxas. Eu tirei as mãos dele e disse que ele estava me confundindo com alguém. Ouvi outro "relaxa". Dessa vez acompanhado de "você está nervosa". Eu retruquei: não estou nervosa! Só não vou fazer o que você quer. Que fique bem claro que não vou trepar com você!

Para meu espanto, ele indaga: não vai me dar nem um beijinho. Eu não domir esperei clarear e sai enquanto todos ainda dormiam. Quando contei para minhas amigas, quase todas disseram "ele era tão feio assim?". Eu fiquei perplexa. Não conseguia entender como eles tiraram essa conclusão. Como se um homem bonito tivesse "licença" para ser escroto. Se ele fosse considerado o homem mais sexy do ano, ainda assim eu não pagaria a minha estada na casa dele com meu corpo! Não é questão dele ser feio ou bonito, mas é do meu respeito e valor. Como pode uma pessoa que não fala contigo achar que tem todo o direito de fazer o que bem entende? Como pode ele não desconsiderar que eu só estava ali porque não podia voltar para casa? Eu estava sem saída. Não poderia simplesmente dizer que ia dormir na rua e tal. Não foi intencional ou insinuante. Sofri coação.

Depois disso encontrei com ele em um evento. Uma conhecida minha inocentemente me apresentou ele. E eu olhei para ele. Esperava pelas minhas desculpas que não vieram. Falei com ele como se nunca tivessemos vivido aquilo. Afinal, era um evento formal. Esbarrei com ele outro dia na rua. Novamente esperei pelas minhas desculpas. Nada. Queria acreditar que de fato algumas pessoas mudam quando bebem, mas se tivesse sido isso ele teria me pedido desculpas. A verdade é que ele não se importou. Para ele, não foi nada demais. Eu chorei muito naquele dia. Foi para minha cidade e voltei para trabalhar. Fiquei distante e pensativa. Meu maior espanto sempre foi com a naturalidade com que as pessoas fazem isso.

Conheço muitas vítimas de estupro. Algumas foram violentadas durante anos  pelo mesmo agressor. Eu não passei por isso, mas reconheço a dor porque tudo que vivi me dói até hoje. Deixou marcas. Imagina a dor daquelas (e daqueles, pois meninos também são violentados) que vivem o ápice da violência sexual? Essas vítimas convivem com o sentimento de culpa. Ainda mais quando o corpo, respondendo a estímulos, leva o agressor a crer que não foi estupro. O que leva a perpetuação do problema é o julgamento da sociedade, a zombaria e a negligência. Devemos, antes de mais nada, mudar a nossa mentalidade.

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