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Jesus (trans)crucificado


Foto: Joao Castellano|Reuters

No domingo passado (07/06), a atriz Viviany Beleboni fez uma performance  na 19ª Parada do Orgulho LGBT que aconteceu na Avenida Paulista. A transexual foi alvo de vários protestos de indignação por parte de religiosos que consideraram o ato um afrontamento à religião. Na entrevista concedida a agência de notícias Reuters, Beleboni revelou: “Eu vejo a parada como um protesto, não como uma festa. (...) Usei as marcas de Jesus, que foi humilhado, agredido e morto. Justamente o que tem acontecido com muita gente no meio GLS, mas com isso ninguém se choca". Antes de dizer o que penso sobre esse assunto aos meus caros leitores, quero compartilhar o texto que um amigo querido e grande ativista postou em seu perfil no Facebook:

Eu já vi heterossexuais (cristãos e não-cristãos) dizendo que o protesto d@ transexual crucificad@ foi "desnecessário" e que teve uma infeliz repercussão negativa, que não cabia num evento que prega a tolerância, que foi um desrespeito com a religião dos outros. Bom, quem tem que achar o protesto desnecessário são os organizadores. Como eu não sou LGBT seria petulância minha dizer o que é ou não necessário para eles. Eu acho que o fato desse protesto ter gerado tanta celeuma indica o quanto ele era necessário. Os LGBT são praticamente "crucificados" todos os dias; associar isso ao calvário de Jesus é ilustrativo e pedagógico. É um convite aos que se comoveram por Jesus para se comoverem com o sofrimento análogo dos gays. A incapacidade de certas pessoas entenderem esse recado mostra o quanto que nos resta de solidariedade seletiva. Sinal de que precisamos de mais protestos igualmente importantes para bradar o óbvio em alto volume. Pra bom entendedor, meia palavra basta. Para certas pessoas, no mínimo mil são necessárias-e uma imagem por elas vale. Se nem ESSA imagem bastou, vamos precisar de muito mais transexuais crucificad@s. Muitas pessoas se sentiram agredidas, mas tem gente que realmente precisa de um tapa na cara. E quem não gostar tem que se lembrar de oferecer a outra face. Até perceber que "todo mundo é parecido quando sente dor". (Bruno Ladvocat Cintra)

Pensei a mesma coisa quando li as matérias divulgadas na mídia. Eu não encarei o protesto como algo ofensivo à religião. Como a maior parte das críticas e ameaças de morte vieram de fundamentalistas cristãos, gostaria de esclarecer dois fatos importantes sobre Jesus, usando a ótica cristã:

1 - Jesus era judeu.
          Ele foi um homem que buscou mostrar aos hebreus a verdadeira forma de servir a Deus através de exemplos dados com parábolas ou com suas atitudes cotidianas. Quem inventou o cristianismo foi Saulo de Tarso que nem conheceu Jesus, mas que caiu do cavalo ao ouvir a sua voz e ver uma luz brilhante descer do céu durante uma das suas perseguições aos seguidores de cristo. Até aquele momento, ele acreditava que esses "hereges e traidores" descumpriam a Lei de Moisés, mas a queda teve forte impacto na vida Saulo que desde então passou a "anunciar a boa nova" (evangelho) a todos que cruzavam seu caminho. Ele mudou seu nome para Paulo de Tarso. A igreja católica considera Pedro o primeiro papa da igreja devido a famosa frase dita por Jesus: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja" (Mt 16,18). Já disse aqui (e voltarei a dizer em outros momentos) que a igreja católica faz uma escolha criteriosamente política sobre o milagre e santidade que cada pessoa canonizada recebe [quem ainda não leu no meu texto sobre São Valentim e Santo Antônio clique aqui. Isso não seria diferente na relação entre São Pedro e São Paulo, não é mesmo? Admitir que a igreja cristã foi criada por um homem que matou muitos cristãos?! Jamais! A teologia cristã reconhece Paulo como o principal difusor do cristianismo, mas ainda vê na figura dos apóstolos a verdadeira "propagação da fé".

         Aí, você pergunta: o que isso tem a ver com o protesto da Parada Gay? Tudo, meu camarada. As religiões cristãs ignoram a origem de cristo e da igreja e ainda se sentem no direito de julgar aqueles que buscam interpretações livres quando elas mesmas foram deturpadoras. Os protestantes foram os que mais se sentiram ofendidos com a manifestação artística de Viviany Beleboni. Falemos um pouco sobre a origem das religiões protestantes... O protestantismo surgiu no século XVI como resultado da discordância do monge Martinho Lutero sobre práticas religiosas deploráveis como a venda de indulgências (compra ou absorção de pecados através de pagamento de "multas") instituída pelo papa Leão X.  Tudo o que Lutero queria era retomar os velhos hábitos dos tempos de Jesus Cristo. Epa, tudo o que os protestantes fazem hoje é mitificar Jesus. Não querem viver como Jesus, mas como eles acreditam que Jesus quer que eles vivam. Ainda não acabei, vamos ao ponto dois...

2 - Jesus era negro.
Particularmente, acho que a deturpação da cor de Cristo pelos europeus deveria ser considerada uma ofensa. Um cristão deveria considerar blasfêmia a reprodução da imagem de um Jesus branco quando ele foi preto. Se Jesus pode ser branco por dois mil anos, qual é o problema dele ser transexual por um dia? Se você acha que estou "viajando", reproduzo aqui um trecho do artigo escrito por Hernani Francisco da Silva resumindo o Curso Cristianismo de Matriz Africana. É um texto simples e educativo, divulgado no site >>Afrokut<<:

Cinco evidências que Jesus não era branco
Por Hernani Francisco da Silva

(...) Jesus nasceu em Africa. Os Evangelhos dizem de maneira explícita que Jesus nasceu em “Belém de Judá, no tempo do rei Herodes” (Mt 2,1 cfr. 2, 5.6.8.16), (Lc 2, 4.15), (Jo 7, 40-43). Nos tempos antigos, incluindo o tempo de Jesus, Belém de Judá era considerado parte de África. Até a construção do Canal de Suez, Israel fazia parte da África. Esta visão haveria de perdurar até 1859, quando o engenheiro francês Ferdinand de Lesseps pôs-se a construir o Canal de Suez. A partir daí, foi a África separada não somente geográfica, mas sobretudo histórica, cultural e antropologicamente do que hoje chamamos Oriente Médio. Aquela milenar extensão da África passa a figurar nos mapas como se fora Ásia.

Jesus tinha presença negra na linhagem familiar. A genealogia de Jesus foi misturada com a linha de Cam desde os tempos passados em cativeiro no Egito e na Babilônia. Nos antepassados de Jesus através de Cam, lado feminino desta mistura, há cinco mulheres mencionadas na genealogia de Jesus Cristo ( Tamar, Raabe, Rute, Bateseba e Maria) (Mateus 1:1-16). As primeiras senhoras mencionadas eram de descendência de Cam. Assim, Jesus pode ser aclamado etnicamente pelos povos semitas e descendentes de Cam. Jesus era da tribo de Judá, uma das tribos Africanas de Israel. Ancestrais masculinos de Jesus vêm da linha de Sem (miscigenados). No entanto, a genealogia de Jesus foi misturada com a linha de Cam desde os tempos passados em cativeiro no Egito e na Babilônia. O antepassado de Jesus através de Cam é narrado em Gênesis 38: então Tamar, a mulher Cananéia (Negra) fica grávida de Judá, e dá à luz aos gêmeos Zerá e Perez, formando a Tribo de Judá, antepassados do rei Davi e de José e Maria, os pais terreno de Jesus.
Jesus se escondeu entre os Negros. Não foi por acaso que Deus enviou a Maria e José para o Egito com o propósito de esconder o menino Jesus do rei Herodes (Mateus 2:13). Ele não poderia ter sido escondidos no norte da África se fosse um menino branco. Não por proteção militar já que nessa época o Egito era uma província romana sob o controle romano, mas porque o Egito ainda era um país habitado por pessoas negras. Assim, José, Maria e Jesus teriam sido apenas mais uma família negra entre os negros, que tinham fugido para o Egito com a finalidade de esconder Jesus de Herodes, que estava tentando matar o menino. Se Jesus fosse branco, loiro de olhos azuis, teria sido difícil para ele e sua família se esconder entre os egípcios negros sem ser notado. O povo hebreus era muito parecido com povo egípcios, caso contrario teria sido difícil reconhecer uma família hebraica entre os egípcios Negros. Foi no Egito que o povo de Israel teve seu auge da negritude, Setenta israelitas entraram no Egito e lá ficaram durante 430 anos, trinta anos os israelitas foram hóspedes, e 400 anos cativos no Egito, eles e seus descendentes se casaram com não-israelitas, chegando a mais de 600.000 homens, mulheres e crianças. Saíram do Egito uma multidão misturada. Etnicamente, os seus antepassados eram uma combinação de afro-asiáticos.
Jesus era semelhante pedra de jaspe e de sardônio. Em apocalipse a Bíblia continua mostrando a negritude de Jesus. Ele é chamado o Cordeiro de Deus segundo as Escritura Sagrada, com seu cabelo lanoso, sendo comparado a lã de cordeiro, e os pés com a cor de bronze queimado (Apocalipse 1:15), com uma aparência semelhante pedra de jaspe e de sardônio (Apocalipse 4:3), que são geralmente pedras amarronzadas. As cores de jaspe e sardônio não são únicas e absolutas, são diversas cores. (...)


       Para mim, a "via crúcis trans" foi uma manifestação artística maravilhosa. É interessante observar que se retiramos a "aura de santidade" de outros personagens bíblicos, não causaremos tanta revolta como ocorre com a figura de Jesus Cristo. Obras artísticas que mostram a sexualidade de Eva, mitos que tratam dos defeitos dos apóstolos, sátiras que são releituras da bíblia com uma abordagem "mundana"... Eu não vejo um católico ou protestante falar sobre essas práticas, mas tocar no nome de Deus... Aí, ferrou! Só que estranhamente em todas as paradas gay há "Jesus gays" circulando, mas dessa vez foi uma representação quase fiel. Aí, ferrou! (2)

         Apesar de os evangelhos de Mateus e de João ressaltarem a figura humana de Jesus Cristo, sem anular a sua divindade, o que mais se vê entre os cristãos é a divindade excluindo a sua humanidade ultrapassando a figura divina do próprio criador. Falta aos cristãos, olhar mais para a figura humana de Jesus Cristo, compreendida no seu contexto histórico e cultural, denominada pela teologia como o "Jesus histórico". Falta olhar mais para o homem que ele foi e menos para o Deus que se tornou. Sim, porque o reconhecimento de Jesus como Messias e filho de Deus cresceu com o passar do tempo. Quem quiser ler minhas provocações sobre a mitificação de profetas clique aqui. Aquele homem que em vida não saiu da Palestina, pela fé de seus seguidores, atravessou continentes e séculos, destruiu as barreiras do tempo e do espaço tornando-se atemporal e universal. É hoje uma das pessoas mais famosas do mundo. A imagem de Jesus Cristo transcende a religião.

         É mais que urgente falar sobre o verdadeiro martírio que é o caminho percorrido pelos gays que vai da assunção pública da homo(trans)sexualidade até a morte. Jesus Cristo resumiu o decálogo em dois mandamentos: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Logo, se ser gay é pecado, não cabe aos cristãos apedrejar, assassinar, insultar... Tudo o que eles podem fazer é oferecer amor e lembrar-se todos os dias de que todos nós temos o "livre-arbítrio". 

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