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Cinco coisas sobre surdos

Ontem, eu vivenciei uma situação bem chata. A médica da perícia do Detran não queria incluir minha deficiência auditiva na minha futura Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Segundo ela, eu a estava ouvindo bem mesmo ela usando máscara, portanto, eu não era surda. Sendo que até na minha nova carteira de identidade consta que tenho deficiência auditiva, tendo inclusive o símbolo da orelha que nos identifica como surdos. Eu tive toda a paciência do mundo para explicar a ela meu tipo de deficiência e eu assinalar que nos dissemos que sou uma surda que ouve exatamente por conta de ter problemas com alguns sons e algumas situações, mas que possuo perda auditiva severa. Ela insistentemente disse que perda severa não é surdez. 
        O curioso é que ela começou a conversa dizendo que adorava surdos, mas nunca viu um blog sobre surdo, um grupo ou um evento. Eu lembrei de vários racistas que dizem amar negros, mas que não vê um evento sobre cultura negra, ou mesmo negros se organizando por uma causa. Ser negra, mulher e deficiente me faz perceber como que algumas mazelas são sentidas por todos os grupos excluídos socialmente. Eu estava em uma posição que exigia muita cautela. Felizmente, consegui que ela me colocasse como uma pessoa apta com restrição de uso de prótese auditiva. No entanto, ao sair de lá tudo que senti foi tristeza. Parecia que eu havia falsificado exames ou estava tentando ganhar alguma vantagem em cima disso. Ela chegou a dizer que não ia mudar nada na minha vida incluir minha surdez na minha carteira. Fico pensando se ela vai esconder uma filha surda do mundo se por um acaso vier a ter uma. Bom, a melhor maneira de lidar com esse sentimento é apresentar a vocês cinco pontos essenciais para começarmos uma conversa: 

Surdo que ouve

Essa expressão foi cunhada na hashtag #surdosqueouvem pela Paula Pfeifer, criadora do blog Crônicas da Surdez que falaremos a seguir. É uma expressão usada para se referir aos surdos oralizados que são pessoas com perda parcial da audição e que faz uso de aparelhos ou próteses auditivas, ou implantes cocleares. São pessoas que não necessitam de Língua Brasileiras de Sinais (Libras) para se comunicar, mas que possuem perdas auditivas de grau moderado a severo. Infelizmente, até mesmo profissionais da saúde tem a considerar surdo apenas os surdos sinalizados que são aqueles que por não ouvir nada não conseguem falar e fazem uso de libras. Quero ressaltar aqui que quando a médica disse que eu a estava ouvindo bem, ela não sabia que na sala anterior eu tive muita dificuldade de entender o que outra pessoa falava comigo por conta dos ruídos do local. Eu só entendi a médica porque ela falava alto e a sala estava fechada. Eu não quis dar essa explicação para ela. Acredito que em primeiro lugar ela deveria me respeitar enquanto pessoa, é uma situação que faz parecer que eu menti na realização da audiometria. Mesmo que fosse possível mentir, eu tenho outro exame incontestável, o Bera (Brainstem Evoked Response Audiometry), também conhecido como Potencial Evocado Auditivo do Tronco Encefálico (PEATE). Esse exame indolor observa o desenvolvimento das vias auditivas e detecta problemas nos nervos auditivos cujo o resultado é obtido de forma automática e computadorizada, diferente da audiometria em que a resposta vem do paciente. 

Libras é outro idioma 

É preciso entender que um surdo sinalizado faz uso da Língua Brasileira de Sinais (|Libras) por ter perda total da audição e, portanto, não desenvolver a fala. Não é correto dizer surdo-mudo por dois motivos: primeiro porque perjorativo no contexto social que se insere e há casos de pessoas que tiveram perda total depois de terem sido oralizadas. E mesmo as que já nasceram com essa condição de surdez total, elas não são mudas, elas possuem capacidade de fala que não é desenvolvida por ausência da escuta. Logo, elas precisam sinalizar e a língua que essas pessoas tem como seu primeiro idioma é a Libras. Aí, entra uma questão que considero de extrema importância: a libras não é a língua portuguesa em sinais. Nessa nossa era digital onde as redes sociais ganharam forças é comum termos um ou outro amigo que posta um meme sobre pessoas que escrevem o famoso "português errado", mas devemos as particularidades de cada caso. No caso dos surdos sinalizados, por exemplo, a escrever em português vem das diferenças estruturais entre a libras e a língua portuguesa. A libras possui sintaxe e gramática próprias, e não deriva da língua portuguesa. 

Setembro Azul

Dia 26 de setembro é o Dia Nacional do Orgulho Surdo e dia 30 de setembro é Dia Internacional do Surdo. Por conta dessas duas datas e outros marcos importantes para a comunidade surda que ocorreram no mesmo mês, setembro inteiro é voltado para a causa das pessoas com deficiência auditiva. A cor azul faz referência a toda opressão vivida ao longo da história e também a faixa de cor azul usada pelos nazistas para identificar pessoas com deficiência como pessoas inferiores. A luta pela inclusão se dá em todos os campos: educação, mercado de trabalho, relações familiares, esportes, saúde, cidadania... 

Abaixo o capacitismo!

Capacitismo é a maneira preconceituosa de tratar qualquer pessoa com deficiência, julgando-a como uma pessoa incapacitada para o mercado de trabalho e totalmente dependente dos outros para gerir a sua própria vida. No caso de pessoas com deficiências de grau leve ou moderado, ou ainda que não seja tão perceptível a olho nu, ele faz com que essas pessoas sejam vistas como vitimizadoras da própria condição. Não é incomum para um surdo oralizado escutar "ah, você quando quer escuta", "você se faz de surdo". Para um surdo sinalizado, ah gestos e expressões faciais seguidas de "coitadinho, mas ele é tão bonzinho" ou "ah, mas ela é tão bonitinha, coitada". Devo dizer: não, não é triste. Triste é ter que ouvir as pessoas falaram isso. Segue um vídeo de comédia que ilustra muito bem diversas situações vivencias por pessoas com deficiência, para além do capacitismo: 


Crônicas da Surdez

O blog Cronicas da Surdez (https://cronicasdasurdez.com/) foi criado em 2010 pela Paula Pfeifer, formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria. Assim como eu, Paula tem deficiência auditiva bilateral neurossensorial. Nossa "diferença" é que a dela é progressiva. Ela usou aparelhos por muitos anos, como eu uso, mas hoje ela faz uso de implantes cocleares. No blog, há textos sobre aparelhos auditivos, outras questões relacionadas a saúde no campo auditivo, concessão de direitos a pessoas com deficiência, relação com familiares, desconstrução de preconceitos Além do blog, foi criada uma fanpage e um grupo (restrito aos deficientes, seus familiares e profissionais da área) no Facebook, perfis no Instagram e no Printerest, além de um canal no Youtube onde consta vídeos como esse maravilhoso aqui: 


Assim Vivemos 

O Assim Vivemos é uma mostra internacional de filmes sobre deficiência cuja pessoa com deficiência é protagonista. Essa mostra não é voltada apenas para a comunidade surda, mas para todos as pessoas com deficiência, seus familiares e aqueles que buscam um mundo mais igualitário. É uma mostra bienal, sendo a primeira edição realizada em 2003 e tendo uma edição especial em 2012. Atualmente, a mostra acontece no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro. Saiba mais: http://www.assimvivemos.com.br/. Coloco essa mostra aqui na lista pela importância do audiovisual na mudança de pensamento e quebra de paradigmas. Sem dúvidas, é uma das ferramentas mais eficazes na desconstrução de mitos sobre qualquer temática existente. 

Ah, encontro de surdos? Temos muitos! Só jogar no Google que vão aparecer vários. Abaixo o capacitismo e respeito a nossas diferenças. Viva o orgulho surdo! 

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