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O menino da bolha: dois filmes e um fato real

É isso mesmo: dois filmes e um fato real. Vamos começar pelo fato real. Para mim, spoiler é vida, mas se para você não é, sugiro que assista aos filmes O Menino da Bolha de Plástico e Jimmy Bolha antes de prosseguir. Mas, já vou avisando: o texto vai além dos filmes e essas obras são difíceis de achar na web. Então, é bem capaz que você tenha que se contentar em ficar só com as informações daqui mesmo que são uma amalgama de outros textos da web e de umas ideias minhas compartilhadas. Para quem já viu, espero que traga boas reflexões. Vamos lá!


O Baby David
David Philip Vetter (1975-1984)

Em 1975, foi ao ar no Fantástico uma reportagem sobre a vida de David Philip Vetter (1975-1984), conhecido como o "menino da bolha". A reportagem feita pelo correspondente Hélio Costa narrava a vida de David que vivia em um local fechado e superprotegido contra germes em um hospital de Houston, em Massachusetes, nos EUA. O "baby David", como Hélio o apresentou no programa, foi diagnosticado com imunodeficiência combinada grave (SCID, sigla do inglês severe combined immunodeficiency). A doença rara e hereditária se caracteriza pelos baixos níveis de anticorpos (imunoglobulinas) e uma quantidade baixa ou ausente de células T (linfócitos). Após receber um transplante de medula óssea que carregava o vírus Epstein-Barr, presente no corpo da doadora, sua irmã, seu corpo não consegue combater o vírus. David morreu em 1984 aos doze anos de idade de linfoma de Burkitt e mononucleose gerados pelas complicações com o vírus que não costuma ser um problema para o corpo humano, mas dada a sua doença ele não tinha mecanismos de defesas naturais no organismo.  Após seu falecimento, seus pais divorciaram e sua mãe Carol Ann Vetter passou a lutar para que outras crianças não tivesse o mesmo destino do seu filho. Atualmente, o transplante de medula óssea é a cura para a maior parte dos casos da doença. 

    Uma história dessas costuma atrair os holofotes. David Philip Vetter ficou conhecido internacionalmente e inspirou dois filmes sobre os quais falarei a seguir. Lembrando que filmes sobre crianças com doenças genéticas raras, ou melhor filmes sobre pessoas doentes, são pratos cheios para roteiristas e diretores de cinema. Seguindo a receita do "menino bolha" (menino + privação da infância + morte iminente), um caso bem conhecido foi o drama vivido por Lorenzo Odone (1978 - 2008). Ele foi um jovem que viveu até os 30 anos de idade com uma doença genética rara, no caso adrenoleucodistrofia (ALD), que dada a deficiência na bainha de mielina vai retirando os movimentos do corpo e dificultando a fala. A história inspirou o filme Oleo de Lorenzo (Lorenzo's Oil, EUA, 1992) que tem uma trama bem mais densa e é pautada no modelo de divulgação científica conhecido como expertise leiga em que cidadãos comuns a partir de uma experiência pessoal passam a se envolver com a comunidade científica para ajudar a encontrar soluções para os problemas. Agora, vamos aos filmes inspirados na vida do David.


O Menino da Bolha de Plástico
(The Boy in the Plastic Bubble, EUA, 1976)

O longa narra a história de Tod Lubitch, um menino que viveu isolado em um hospital, mas que vai morar com os pais quando completa 4 anos de idade. Diferente de David, o Tod não tem amigos e é considerado uma aberração. A sua chegada é bastante tumultuada com a presença de repórteres e é marcada pela fala de sua vizinha de mesma idade, Gina Biggs, que o chama de monstro repetidas vezes. Eles não se tornam amigos na infância, embora Gina sempre estivesse presente em suas festas de aniversário como a única convidada. Na adolescência, a jovem passa a fazer mais contatos com ele, sendo diversas vezes insensível e rude com o rapaz. E ele na sua carência emocional segue apaixonado por ela. Tod passa a frequentar remotamente a mesma escola que Gina, fazendo parte da sua turma. Acho que nenhuma criatura viva ou morta desse mundo entenderia alguém resistindo a John Travolta no auge só porque ele vive em uma bolha. Eu tentaria perder minha imunidade junto, mas tudo bem. Sigamos.

    Diferente de David que usa roupas especiais já em tenra idade, Tod passa a usar roupas parecidas com roupas de astronautas apenas na adolescência quando resolve ir para a escola assistir as aulas presencialmente. A relação com os colegas de classe não são amigáveis e a sua paixão infantilizada por Gina, o força a tentar impressioná-la o que acaba por colocá-lo em situações complicadas para sua saúde. A vida de Tod se resume a idas ao médicos, as visitas médicas em sua casa e as aulas na escola. O filme foi realizado quando David ainda era um bebê, então, não se podia prever que o verdadeiro "menino da bolha" teria tido menos sucesso que Tod em vida pessoal. Embora, David tivesse amigos e fosse amado por suas irmã, pais e outros familiares, ele não seguiu sendo a pessoa alegre e animada que o personagem Tod se mostra. Muito menos teve a chance de viver um amor adolescente, ainda que não correspondido a altura. 

    Após um desentendimento com Gina, Tod decide morar um tempo no hospital. Lá, ele passa a dividir o quarto com Buzz Aldrin cujas sessões de quimioterapia para tratar de um tumor acabaram com a imunidade do seu corpo. Curiosamente, Buzz Aldrin é o nome real do ator que interpreta o personagem, Buzz da vida real é mundialmente conhecido por ser um astronauta e o segundo homem a pisar na lua! Para que dar um nome fictício a uma pessoa dessas não é mesmo?  A historia do Aldrin personagem é semelhante ao Ted DeVita (1962 - 1980). Ted desenvolveu anemia aplástica que o fez viver em uma sala de hospital muita parecida com um quarto, como nos mostra o filme. Este tipo de ambiente havia sido criado em 1969 para proteger pacientes com leucemia. Nota-se que no filme Aldrin é vítima de um tumor. A mudança da história de Ted para um tumor em Aldrin é uma boa sacada, pois junta a anemia de Ted com os casos de tratamento de câncer do hospital. 

    A família de Ted não autorizou que sua historia fosse contada no filme. Apenas um livro foi lançado em 2004, The Empty Room: Surviving the Loss of a Brother or Sister at Any Age, escrito por sua irmã Elizabeth DeVita-Raeburn. Fechando os parentes e voltando ao filme, a película traz uma história sem muitos enredos, mas há dois momentos de liberdade para o personagem que são muito marcantes: a sua ida a praia para "se divertir" com os colegas da escola no data simbólica de 04 de julho, Dia da Independia dos Estados Unidos, e o momento em que ele resolve "furar a sua bolha" saindo passear a cavalo com sua amada Gina. Sem mais explicações, o filme nos deixa o recado de que viver livremente é o melhor que todos nós podemos fazer. 


Jimmy Bolha
(Bubble Boy, EUA, 2001)

Há "trocentas" coisas para falar desse filme, mas eu vou tentar ficar em quatro parágrafos para fazer jus ao filme discutido anteriormente. Começo dizendo que o menino bolha desse filme tem duas vantagens. Aqui, o personagem de Jake Gyllenhaall tem mais sorte que o personagem de John Travolta: primeiro, a Chloe sempre foi apaixonada por Jimmy. Segundo, a casa inteira do Jimmy foi adaptada permitindo um deslocamento considerável. No entanto, a melhor parte da casa para ele era o quarto, pois avistava a sua Chloe da janela, da mesma forma que Tod avistava Gina. A amada do garoto bolha tem uma vantagem também: diferente de Gina, Chloe se mostra inteligente, enquanto Gina precisou da ajuda Tod para melhorar as notas na escola. A única ajuda que Jimmy oferece para Chloe é ensiná-la a tocar guitarra. Feitas essas comparações iniciais vamos a questões da obra em si. 

    O filme foi produzido em 2001, um ano após o estouro da bolha da internet. E da mesma forma em que a bolha da internet cresceu economicamente de forma absurda até sair do controle dos acionistas. Jimmy é um jovem que vive em uma bolha e cresce até se tornar um adolescente que não pode mais ser controlado pelos pais. Apesar de sua mãe ser super protetora, ela não deixa de ser tóxica, sobretudo, quando tenta fazer o filho acreditar que não é desejado pelas garotas por viver em uma bolha. Apesar dessa tentativa de gerar no filho um complexo de édipo, Jimmy Livingstone se tornou um adolescente com muita personalidade e carisma. Ao ponto de arrastar verdadeiras multidões quando resolve atravessar o país para impedir o casamento de sua amada com um perfeito babaca. Para cumprir sua jornada, ele vai pegar carona com muita gente, viajando de ônibus, carro, trem, moto e avião. A medida em que ele vai descobrindo e experimentando o mundo, ele traz suas verdades como uma criança que não é capaz de manipular, mentir e omitir coisas. Os personagens que ele encontra pelo caminho são  extremamente caricaturais. Por motivos diferentes, todos seguem atrás dele mesmo quando ele se despede. 

    Ela vive literalmente em uma bolha, mas nos passa um recado de que a bolha no sentido figurado é vivida por todos nós. Isso fica claro quando vemos que ele faz amizades com pessoas de diferentes grupos sociais , mas todos de alguma maneira se identificam com ele. Esses grupos não interagem entre si, vivem realidades completamente distintas, mas encontram em Jimmy um ponto de união, um elo. O jovem acaba ajudando as pessoas a resolverem seus dilemas e o caso mais engraçado são os dos irmãos, Pippy e Pappy, que não se falam a 86 anos. Um diz que foi por conta de o outro ter roubada a Puna, o outro diz que foi pela Punana e ao final eles se entendem e se juntam a Punani. O que deixa ainda mais característico a narrativa "fabulosa", no sentido de estrutura de fábula, do filme. Não por acaso, Jimmy ama coca-cola e bebe com muito prazer enquanto o David entrou em coma após implorar por uma coca-cola e não mais acorda vindo a falecer. É como dizer que o David das histórias fictícias pode tudo. 

    As mentiras contadas pela mãe de Jimmy vão sendo desveladas em suas experiências mundo a fora. Há quem diga que o filme desrespeita a religião hindu, mas se acompanharmos a sequencia vemos que Jimmy entende e aprende a respeitar outras crenças religiosas, assim como sua mãe deixa de usar valores cristãos para impor princípios moralizantes. No momento em que ele descobre que há muitos anos seu corpo adquirira imunidade, podemos notar que sua mãe sofre de Síndrome de Munchausen por Procuração. Como todo filme de comédia norte-americano que apresenta doenças raras e patologias incomuns, não há nenhum questionamento sobre isso. Tal síndrome se trata da necessidade da mãe ou pai da criança provocar sinais e sintomas de doenças en seus filhos afim de torná-los dependente de seus cuidados. É uma forma de abuso infantil que ficou muito conhecida com o caso da Dee Dee Blanchard que durante anos fez a sua filha Gypsy Rose acreditar que tinha diversas doenças até o dia em que ela descobre e mata a mãe. Vale dizer que a história real Dee Dee e Gypsy inspirarou o documentário Mamãe Morta e Querida (Mommy Dead and Dearest, EUA, 2017), a série The Act (EUA, 2019) e o filme Fuja (Run, EUA, 2020)

Em ambos os filmes aqui debatidos, o menino da bolha vive mais que David, se recupera sozinho de uma doença rara e vive uma realidade para lá de utópica. O cinema é a potencia de fabular não é mesmo?! Tudo é possível! Se não foi possível vivenciar os sonhos de David na realidade, foi plenamente possível extrapolar nas telas. Até a próxima!


Referências: 

12 anos sem abraços e sem Coca-Cola: uma doença rara fez um garoto passar toda a sua vida em uma bolha: https://fabiosa.com.br/lbmkt-ctfk-rslpr-aukbk-trmfr-pbgic-garoto-vida-em-uma-bolha/

Caso do menino da bolha: https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/jornalismo-e-telejornais/fantastico/reportagens/caso-do-menino-da-bolha/

Morreu Lorenzo Odone, que inspirou o filme "O óleo de Lorenzo": https://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL585436-7084,00.html 

O que é a scid: https://www.tuasaude.com/scid/

O Rapaz da Bolha de Plástico: https://porcoselefantesedoninhas.blogspot.com/2020/04/o-rapaz-da-bolha-de-plastico-boy-in.html 

Síndrome de Munchausen por Procuração: quando a mãe adoece o filho: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/ccs/sindrome_munchausen_procuracao.pdf

Ted DeVita: https://en.wikipedia.org/wiki/Ted_DeVita

The Boy in the Plastic Bubble: https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Boy_in_the_Plastic_Bubble

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