Pular para o conteúdo principal

O Encanto na Narrativa Cinematográfica

Deleuze diz em As Potências do Falso que Jean Rouch “substitui suas ficções pelas fabulações do outro”. O mesmo serve para falar de Luiz Villaça em relação ao estilo que ele adota em O Contador de Histórias. O filme poderia ter uma linguagem dramática que coloca a violência e a pobreza como problemas sociais insolúveis. Mas Villaça prefere construir uma narrativa que mostra as peripécias de um menino de treze anos recheadas de fantasias que se misturam com a realidade.
12x
Ver o mundo como uma história fabulosa era quase um tranquilizante para Roberto Carlos Ramos, hoje um dos maiores contadores de história do mundo. E para contar a vida deste que encanta pela palavra e por seu dom para contar história, Luiz Villaça optou por mergulhar neste universo mágico. O filme faz uso de figuras de linguagem semelhantes às dos mitos, fábulas e contos infantis. É tudo tão mágico que se fecharmos os olhos ao ouvirmos o próprio Roberto narrar “comida de primeira, professores edificantes e quartos especiais” concluiremos que sua mãe fez a coisa certa ao levar para a FEBEM o seu filho caçula, com apenas seis anos de idade. Mas, quando abrimos os olhos, percebemos a metáfora. Era justamente o contrário que acontecia.
08x
“O Contador de Histórias” não poderia ser contado de outro jeito. Nós fechamos os olhos para sonhar. Fechamos os olhos, dormimos e sonhamos. É possível sonhar de olhos abertos, e Roberto fez isso boa parte de sua vida. Mas no filme o sonho está preso à narrativa. As imagens das fabulações de Roberto se misturam com as imagens da realidade vivida por ele. Villaça não apela para o sentimentalismo. Toda a emoção sentida pelo espectador é decorrente da própria história. “Música só quando fosse necessário”, disse. Não podia ser melhor.

O menino que tinha um diagnóstico de irrecuperável – ele já tinha fugido 132 vezes da FEBEM - encontra alguém que vai preencher o maior de todos os vazios: a falta de afeto. A pedagoga Margherit Duvas (Maria de Medeiros) não se conformou com o rótulo dado a uma criança de apenas treze anos. E, ao dizer as palavras mágicas que atraíram a atenção de Roberto – com licença e por favor – se inicia uma amizade, um elo familiar. Margherit conseguiu transformar a vida de uma criança apenas com gestos, atenção, carinho e afeto.
03x
A postura de Margherit é contrária a de todos nós. Adotamos a posição da diretora da FEBEM, Pérola (Malu Galli). Ela gostaria de cuidar dos menores, mas acha impossível. O próprio cinema costuma retratar todos os marginalizados, no sentido de viverem à margem da sociedade, como casos comuns. “Acontece todos os dias”, “eles vem e vão”. A rejeição é “natural”. Poucos são os filmes que tratam de pobres, traficantes e menores infratores pela ótica deles. Em obras como Wilsinho Galiléia e O Bandido da Luz Vermelha, o cineasta abandona “suas ficções para viver as fabulações do outro”. 

A maneira como a história de Roberto Carlos Ramos chegou às mãos de Luiz Villaça se assemelha muito com os “acasos” existentes nos mitos e, na verdade, são previsões de um destino a ser cumprido. O diretor lê para seu filho uma história escrita por Roberto, e ao ler o resumo biográfico do autor na última página, resolve fazer um filme de mesmo nome. Esse é o momento na fábula em que se dá a descoberta do mundo mágico.
13x
E como toda boa história há um “felizes para sempre”. Que o cinema costuma deixar de lado ao retratar a violência e a pobreza. Villaça tomou a mesma atitude de Margherit ao não aceitar o comum. E é exatamente isto que cativa. Ao trabalhar com questões complexas de forma tão encantadora, nos leva a admirar Roberto em vez de sentir pena de um vencedor.

Texto publicado originalmente em 06/08/2009 na sessão “Colunista Convidado” do extinto site Lixeira Dourada.

Comentários