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Verdades e mentiras no cinedocumentário: análise do filme Juízo, de Maria Augusta Ramos e Wilsinho Galiléia, de João Batista Andrade

Será tudo verdade?


João Batista de Andrade em Wilsinho Galiléia cria uma nova linguagem para o cinema numa época em que não havia espaço para a criação. Num período que a censura ditava quem podia fazer e como deveriam ser feitos os filmes. O cinema reafirma o seu sentido de arte e entretenimento. Pois, o filme de João Batista tem caráter artístico e foi desenvolvido para um programa feito para as massas. Os cineastas que começaram no Globo Repórter dos anos 70 encontraram no próprio conceito de cinema uma maneira de ligar a arte a comunicação e a informação.
    Já Maria Augusta Ramos em Juízo encontra uma nova linguagem para cinema num momento em que a banalização da violência tomou conta do cinema. Augusta se distancia da “arte da violência” para discutir a violência através de um “documento-ficcional” onde verdades e supostas verdades são imagens que se misturam. Para explicar a precariedade do sistema judiciário brasileiro Augusta reafirma o trocadilho com o dito popular: uma imagem vale mais que mil palavras.
         O filme de João Batista mostra através dos depoimentos dos vizinhos e parentes de Wilsinho que, mesmo ele sendo um criminoso, era um ser humano. Já Maria Augusta mostra através dos depoimentos dos jovens que mesmo sendo infratores eles são menores. São crianças. A juíza Luciana Fiala em uma das cenas diz que ali o menor ainda tem uma chance de ser entendido, mas lá fora (em outras prisões) quando ele for maior ninguém vai querer saber se você tem pai e mãe. Esta frase é o elo entre o documentário de Maria Augusta e João Batista. O Wilsinho representa todos esses menores delinquentes que atingem a maior idade. 
      O documentário de Maria Augusta desmitifica as instituições como sendo lugar ideal para menores infratores. O filme não julga o que é o certo ou o errado. Ou o que é verdade e o que é mentira. O conceito de narração verídica de Deleuze em As Potências do Falso está exposto claramente: sistema de julgamento (juiz, réus e os pais no lugar de testemunhas) com acontecimentos em tempo real e com personagens reais. É o que Deleuze vai chamar de imagem-ação. Os depoimentos adquirem autonomia dentro do filme. O uso de uma câmera fixa sem qualquer interrupção na ação faz as imagens falarem por si. Ao mesmo tempo que em Juízo se aplica uma imagem falsificante quando outros jovens interpretam os infratores. Eles foram escolhidos para atuarem no documentário por que passaram por situações semelhantes. Logo, a identificação que leva o “eu ser o outro” e o “outro ser eu” persiste entre os personagens. Há também uma autonomia dos personagens não os que estão no plano (juíza, menores e os seus pais), mas os que aparecem no contraplano (os atores). Como Augusta mesmo disse, Juízo é um filme também sobre estes atores. O “falso” e o “verdadeiro” cada um tem suas próprias dimensões dentro do filme. 
          Em Wilsinho Galiléia é a idéia de uma narração falsificante que se estabelece. Pois, não há uma ordem cronológica para contar a vida de Wilsinho. E a substituição do sistema de julgamento dos crimes para uma encenação das ações impede o espectador de julgar o assassino. O espectador primeiro acompanha toda a narrativa para depois julgar. Mesmo havendo narração em off, que poderia direcionar a o olhar do espectador sobre o filme, o texto do off se ausenta de julgamento. Talvez por ser a mãe de Wilsinho narrando. A câmera na mão dá essa idéia de acompanhamento. É aquele “vem cá, veja se é isso mesmo”.
      A narrativa se dá nessa aproximação entre ficção e documentário. Como Deleuze afirma, a ruptura maior neste tipo de obra não se dá entre o que é verdade e o que é mentira, mas em como é contada a história. Misturar o falso (atores representando os personagens), com o verídico (personagens reais dando depoimento) em Wilsinho Galiléia deixa a dúvida: até que ponto é verdade? Será que ele era mesmo um monstro ou apenas foi mitificado? Já em Juízo a questão é: até que ponto foi pura interpretação dos atores? Os atores, eles próprios, tiveram um sentimento de alteridade ou de empatia?
         Enquanto um filme desmitifica a proteção dada pelas instituições, o outro relata a mitificação do bandido. A narrativa em cima da construção desse mito sobre Wilsinho é o que Deleuze vai chamar de uma narrativa orgânica, já que todos os depoimentos apresentados são representados logo em seguida. Não chega a ser um plano-sequência tal como é concebido por Deleuze, mas é uma narrativa orgânica de ação-reação que é descrita organicamente por imagens falsificantes (simulações).
          O próprio documentário de João Batista fornece imagens que falam por si. Como o instante que aparece Wilsinho dirigindo um carro, logo após o depoimento da namorada de seu comparsa afirmando que ele adorava carros e a fama. O enquadramento da imagem lembra aos clipes onde estrelas aparecem dirigindo carros. A mesma jovem diz que Wilson adorava ver seu nome nos jornais. “Ele comprava jornal todos os dias”, ela diz. É surpreendente ver as testemunhas falando em uma pessoa sonhadora, um rapaz educado e sério. Bem diferente do Wilsinho anunciado nos jornais. Tanto Juízo quanto Wilsinho Galiléia trata da crise da verdade imposta por Deleuze. A própria idéia de imagem-tempo se relaciona com as imagens de um bandido fornecidas pela imprensa e a imagem de um rapaz sério e sonhador descrita pelos vizinhos. Seria Wilsinho ao mesmo tempo um jovem comum cheio de ambições e um bandido que matava por nada? Esta relação de imagem-tempo se dá fora de campo, pode ser feita pelo próprio espectador.
      O depoimento dos personagens fictícios aparecendo em primeiro plano. Além de dar mais veracidade aos depoimentos, alude muito à foto 3x4 e a foto para ficha criminal, tirada de frente com uma placa contendo nome e nascimento e vem seguida de outras de perfil. A alusão a fotografia é uma forma de registro, de documentar, de tornar verídico não só o depoimento, como tomada do personagem fictício pelo real por parte do espectador. 
          Com o distanciamento da câmera ao mostrar o local onde os menores se alimentam nos causam uma sensação de impotência diante dos fatos. Temos a impressão de que toda ação é dada e não pode ser mudada. As coisas são o que são é tudo que podemos fazer é assistir. Mas é justo nessa esfera de impotência que nos potencializamos em fazer algo por estes menores. Num dado momento, o angulo da imagem dos menores de cabeça baixa reforça a idéia de enfileiramento remetendo-se ao conceito de sociedade disciplinar a que propõe Focault. Será que esta disciplina que vai reabilitar essas crianças?
          A ilusão de que a cadeia ou as instituições para menores infratores oferece a reabilitação dos criminosos é desmascarada pelos documentários aqui estudados. Esteticamente, eles oferecem uma extensão da estética do feio. A violência no cinema substitui o feio pelo trágico. Esse trágico é evidente no enquadramento da imagem das mães que visitam seus filhos no reformatório em Juízo ou da mãe visita os filhos (os irmãos de Wilson) na cadeia em Wilsinho Galiléia. Neste último, a cena é impactante e revela que o sofrimento dela não acabou. Ambos os filmes tentam através das imagens e das narrativas sobre a vida dos personagens explicar as razões os levam a cometer crimes. Os filmes não respondem, eles deixam o questionamento para o espectador.

Obs.: Este texto foi escrito para a disciplina O Cinema entre o Documentário e a Ficção e publicado originalmente em 02 de junho de 2009 no blog da professora da PUC-Rio e cineasta Andréia França: http://ofalsonocinedoc.blogspot.com/

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